Sobre vivências DE AMOR

Larissa Amorim Borges

O presente texto é um registro breve de trechos compartilhados por mulheres diversas nas
rodas de conversa realizadas nos ensaios abertos do espetáculo Marca-passo em julho e
agosto de 2022. Por trazer elementos sensíveis para todas nós, é de algum modo, uma
escrevivência coletiva de mulheres negras nas encruzilhadas da vida, entre corpos diversos
e universos subjetivos complexos, nas contradições entre amor, desamor, não amor e Auto
amor.

Essa noite nos reunimos no coração da Periferia para falar daquilo que merece ter
centralidade em nossas vidas: o amor. Marca-passo de/ com Suelen Sampaio hoje calibrou
o coração das Mulheres da Quebrada. Gerou movimentos que contribuíram para que os
corações de todas nós pudessem manter o ritmo, encontrar um novo ritmo, reconhecer o
próprio ritmo… Foi incrível.

Foi possível perceber os olhares, os suspiros, no silêncio sorrisos e nas lágrimas discretas.
Aqueles movimentos corporais provocaram movimentos subjetivos em cada uma delas. Da
mais nova a mais velha todas se identificar em algum momento com as tentativas de Amar
e ser Amada.

A construção do amor, tijolo por tijolo, na edificação de um território próprio onde o afeto
pode estar presente de formas diversas e surpreendentes. E quem disse que os tijolos são
fixos? Eles são vivos, tem memória, sustentam o movimento do qual fazem parte.
Tô aqui pensando no amor. No amor, no desamor, na falta do Amor, no desejo de amar e
ser amada … Quantas vezes tentei… ? Quantas tentativas frustradas … ? Quantas
tentativas? Quantas tentativas bem sucedidas …? Nem sei o que dizer… às vezes (respiro
pausa)
Como a lenda sobre um tesouro pirata escondido em algum lugar do mapa, rodeado de
armadilhas e surpresas.

Embora nem todo mundo consiga perceber o amor na periferia tem centralidade. A busca
pelos amores, como a busca por um grande tesouro que não temos a certeza de existir,
mas que desejamos que exista. Buscamos, buscamos, buscamos a vezes essa busca nos
deixa cansadas, exaustas, dilacerada, com tantos assaltos e repetições no caminho mas,
buscamos. Estamos em busca porque mesmo sem ter provas grandiosas da sua existência,
sentimos que ele existe e que ele é possível para nós, mulheres pretas da periferia, ainda
que em um ato de insubmissão.

Numa sociedade racista, machista, lgbtqifobica amar é pode ser uma importante
transgressão. Assim, a existência do amor parece ser sentida e pressentida e desejada
mesmo e principalmente em contextos onde o Desamor ou não amor e a violência estão
naturalizados.

A partir das falas das Mulheres da Quebrada é possível perceber que o desejo de amar e
ser amada existe ao tempo resiste as tentativas do sistema de provar a sua impossibilidade.
E (re)existe mesmo quando cansadas ou descrentes elas desintencificam a busca. Sentir-se
digna de amor é uma insubmissão praticada por elas.

Sentir-se digna de amor é uma insubmissão praticada por elas às vezes ou todos os dias.
Ser capaz de amar e de se amar é uma imposição subvertida por elas às vezes e todos os
dias ou quando possível.

A descoberta do auto amor, do amor próprio, do amor interior se apresenta como grande
conquista, como o ápice da experiência de amar e ser amada, como ponte concreta para
outras realidades subjetivas e corporais.

Os vários tipos de amor, os vários modos de Amar, a buscar dentro, a busca fora…. amar a
si, amar ao outro … amar os filhos, o marido, os pais, a mãe… amar a vida amar a si.

Sim, é possível se identificar com um corpo de mulher negra que se move rumo ao amor
enfrentando os cíclos de depressão e violência que insistem em se repetir. Persistindo em
buscar, encontrar e criar significados e sentidos para não morrer, sobreviver viver, renascer
para reviver para transcender nas relações e na vida.

Mesmo diante do racismo, da morte, da humilhação, da violência doméstica, mesmo com
isso, apesar disso e além disso, as mulheres da Periferia estão aprendendo a se amar em
primeira pessoa.

“Mamãe, ela já tá dançando !?” Como falar de amor? Como construir nos nossos corpos
uma experiência de amor que não dói? É possível um amor que não dói? É possível amar
sem doer? Como você vê o amor? Como você percebe o amor? É possível falar de amor?
É possível falar de amor sem doer? Como viver o amor sem doer? será que isso é
possível? Como recomeçar depois de um amor que dói ? Como recomeçar depois do amor
que destrói ? O que destrói é amor ou seria outra coisa que nomeamos de forma
equivocada?

“Eu sinto muito orgulho de mim queria ser feliz mas já estava cansada e não queria ter que
passar por essas humilhações de novo a dança me fez eu me enxergar”
O que o seu corpo tem falado sobre amor? O que o meu corpo tem falado sobre o amor?
“Amor pra mim é a construção de algo.”

” (…) e a expectativa no meio do caminho… estava estava meio desanimada” “A gente é
que consente a gente coloca muito a expectativa no outro.”
“Teve uma hora que eu fiquei inquieta queria me levantar da cadeira queria me movimentar”
“Teve uma hora que eu me identifiquei”

Como se reconhecer dentro dessa história? “O amor é primeiro em nós e depois no
outro.”(…) “Ela ainda não ama o espelho conheci uma menina que por causa da sua cor ela
ainda não consegue se amar e não consegue se olhar no espelho”
“Perguntei para o meu filho o que ele sabia sobre suas ancestrais, e ele me disse: “ela
(minha avó) é pior que ela (minha mãe).”

Ele se referia a situações de dor e opressão que elas haviam vivido e que haviam
transmitido para as outras gerações, mas a história delas a presença delas não se limitava
a essa dor e eu precisava mostrar isso para ele”

“Minha mãe me diz eu te amo com comida. As vezes ela guarda a rapa do angu para mim,
às vezes me dá uma frutinha. Ela não faz isso com os meus irmãos, ela só faz isso comigo
agora que eu sou adulta, e cuido dela.”

Como você aprendeu a se amar?

“Namorei escondido sete anos e minha mãe Preto para ela…” ela conta de um amor que
viveu sete anos escondido e que agora tem mais 37 anos de casada mesmo diante das
experiências de reprodução do racismo o relacionamento segue em frente e já outras
pessoas negras na família, como seu amado.

O amor, o trânsito e a transmissão inter e transgeracional.

As crianças estavam muito atentas, mas não quiseram falar. As adolescentes também não,
mas estavam atentas a tudo em especial a presença das Mães e o dialogar delas sobre tão
profunda intimidade pode ter feito os mais novos preferirem só ouvir com respeito carinho e
muita intencionalidade.

Ela contou que sobreviveu a um amor de morte que quase morreu mas decidiu se amar se
priorizar priorizar as filhas decidiu vencer o medo para escapar da morte e hoje vive outros
amores possíveis mais viáveis com mais vida.

Ela relata que a sua história foi conhecida na favela. Sente orgulho de estar viva, bem
cuidada, bonita e feliz para contar sua própria versão e para estrear novas edições do ato
de Amar.

“A dança para mim foi como um espelho eu me identifiquei muitos momentos.”
“Meu choro ultimamente tá só aqui dentro do peito.”
“O maior amor que vivi foi o amor por mim mesma, perdi uns quilos e conheci meu corpo,
mudei meu corpo. Fui ao médico, tomei uns remédios, emagreci, recuperei minha
autoestima.

“Percebi que se eu me amasse eu daria um fim naquela relação.”

“Quem não tem uma história para contar?”

“Hoje o amor para mim é estar em paz.”

Ouvi a história de cada uma dessas mulheres e também o seu silêncio também me fez
pensar nas minhas tentativas de amar e ser amada me fez pensar na potência da
subversão do imperativo de amar ao outro para construir prioritariamente um amor por mim.
O amor é um investimento, uma busca, uma construção. Há construções que precisam ser
demolidas, a territórios que precisam ser ocupados.

O amor para o povo mineiro é como o mar. Ainda que formalmente ele esteja além de
nossas fronteiras nós o buscamos. Vamos ao seu encontro. As vezes molhamos os pés, as
vezes mergulhamos de corpo inteiro.

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