não lembro bem…
corrigimos e finalizamos o roteiro de MarcaPasso da versão curta em 10 de março de 2022.
MARCAPASSO
Espetáculo de dança-teatro com roteiro de Alexandre de Sena e Suellen Sampaio
:: Que bom que você veio
O público está entrando no teatro, ou onde for a experiência/apresentação.
A luz da plateia está acesa e a do palco também.
Suellen se encontra no centro da área cênica.
Ela parada olha para as pessoas e sorri. É um sorriso convite, um sorriso abraço de mãe preta recebendo convidados em seu barraco-corpo-coração.
Em alguns momentos ela olha para os pés, massageia o peito, respira. Sempre sorrindo.
O público se acomoda. A luz da plateia se apaga.
Suellen continua em cena. Sente a presenças do cóccix até o pescoço.
Inicia-se um áudio.
:: Fatini, um prólogo?
Ainda em sua posição, Suellen escuta o depoimento em off de Fatini Forbeck.
“Respira,
deixa o fôlego da vida entrar e dar sentido a isso tudo aqui dentro.
Respira,
você não vai morrer por isso!
E o máximo que vai acontecer é você precisar usar um marca-passo.
A título de informação,
o marca-passo é necessário quando
o caminho do impulso que faz o coração contrair é interrompido por alguma razão,
levando a mudanças na frequência
e no ritmo cardíaco.
Avalie se é necessário usar!
Marca-passo é um transbordamento afetivo,
é um atravessamento impetuoso
que reverbera no corpo
fazendo coração parar e bater em ritmos e tempos desgovernados,
como nosso país.
É,
talvez o Brasil precise de um marca-passo.
Respira,
o amor vai dançar,
tem tijolo no chão, que é pra você entender que o amor é que é construção!
É torre forte, inabalável, inalcançável, irrompível, até o dia que desmorona.
E a gente sem vergonha, reconstrói.
Mas não aprende mesmo, né?
Respira,
tem garrafinha d’água,
a mesma que você deixa ao lado do colchão
pra matar a sede que você acabou de saciar,
depois de horas marcando o passo do corpo da outra vida,
ali.
Tem suor,
o mesmo que transpira das suas mãos quando vê a paixão atravessar a rua,
fumando um cigarro de palha, tomando um latão
e eu achando um exagero,
pensando:
Como pode alguém atacar ao mesmo tempo o meu fígado,
o pulmão
e o coração?
Respira,
o amor vai dançar.
Levantando os braços como asas,
pisando firme em ovos de afeto.
A cor preta reluz como o farol da barra em Salvador.
Dor, tem também.
A gente sente,
entende,
analisa
e aprendi,
sempre.
É tanto nó que embola a alma,
cala tudo,
logo, eu marco o passo de
um tempo
só.
Respira,
vai começar!
O amor levanta o braço,
estica a perna,
roda a cabeça,
bate cabelo,
pára!
Toma um impulso para o passo principal,
corre, salta, rodopia e cai.
Ele olha tímido,
com vergonha pensando se vale a pena continuar.
É que tem tanta gente vendo que, não sei se vale.
Respira.
A resposta vem de dentro.
Mas se algo posso dizer
é que em tempos onde o ódio é de graça
amar é ato de coragem.
Respira.
Marca o passo do futuro para além da dor,
marca o passo do amor.
A preta te conduz.
Bom espetáculo.”
Suellen sai de cena.
:: Insular
A luz se modifica.
Com o espaço cênico iluminado, Suellen entra em cena com um capacho azul, o posiciona no centro e sai.
Ela volta com tijolos em uma sacola e começa a posicioná-los em cima do capacho.
Senta em uma extremidade da construção. Retira uma garrafa da sacola e bebe água.
Um som se inicia.
:: Movimento 1
O som aumenta.
A luz se concentra no cenário criado com o capacho e com os tijolos.
Suellen se levanta e dança.
São movimentos de des-captura, contra-coloniais.
Uma regra: o corpo está sempre ligado à ilha construída.
O som cessa.
Suellen senta
:: Um pouco de água
A luz ilumina todo o espaço cênico.
Ela acessa a sacola.
Revisita a garrafa de água.
Bebe.
Respira e encara o público. Um olhar que penetra e questiona.
Respira.
:: Movimento 2
O som ressurge.
A luz se concentra no cenário criado com o capacho e com os tijolos.
Suellen se levanta e dança. A regra do jogo é a mesma, o corpo sempre ligado à ilha.
Não tem pausa.
O som se modifica e se transforma na música Peau De Chagrin – Bleu De Nuit’ extraída do álbum ‘137 Avenue Kaniama’ de Baloji:
Bleu de nuit
Bleu de nuit
Mon amour
Est ce que l’on peut joindre le futile à l’agréable
Avant qu’il ne se réduise à une peau de chagrin?
Mon amour
Ce n’est pas que je t’aime follement
Mon amour, ma faiblesse
Est-ce la chair ou le corps qui est faible?
Cette traversée du désir t’épuise le bassin
Mon amour, ma faiblesse
Mais je n’ai aucune raison de rester sain
Avant de prendre tes jambes à mon coup
Avant que le rouge ne te monte aux joues
Tu mène les ébats, l’âme liée au corps
Par cette passion énergivore
Jeux de poignet, vapeur de?
Des draps souillés, sans amour propre
Moment d’égarement, désir impatientLe goût de la nouveauté, de l’enchantement
L’absence est partout
Surtout ne pas se lai
ser envahir
L’ombre de nos souvenir de nos nuits sans dormir
Nous étions l’un à l’autre
Nnous étions l’un et l’autre
Que sommes nous l’un sans l’autre?
Est-ce que l’on peut se goûter l’âme du bout des lèvres
Avant que cette affaire ne tourne au vinaigre?
Murmures, soupirs, inaudibles
Délicate morsure
Volupté indicible
Avant de se loger dans le duvet des aisselles
Faire de ma salive aquarelle
Grain de beauté, constellation
Disparaissent sous la paume, sueur, traction
Le sang qui bat sous mes tempes
Cette lubie a une taille de guêpe
De nymphe, tu me finis sur les rotules
La bouche en cœur, fais moi croire que tu capitule
Mon amour pense tu que le fait que nous soyons sexuellement compatible
Mon amour, le fait que nous nous entendons
That we complet each other
That we complement each other
Est-ce que t’as le cœur bien accroché?
Débauche de sens, intention cachée
Bouffée de chaleur, force centrifuge
Déguisent la sueur en purge
Est ce que deux corps qui s’encastrent
Sont pour autant soudés l’un à l’autre?
Est ce que la mécanique du cœur s’enclenche
Comme un réflexe épidermique dès que l’on s’épanche?
Pour ce magnétique bouton de chair
Pour lequel je suis la chenille ouvrière?
Il n’y a pas d’amour, que des preuves d’amour
Le corps est une preuve d’amour
Bleu de nuit,
Ce balais statique
Éloge de l’ennui à deux
Bleu de nuit
Bleu, bleu, bleu de nuit,
Laisse moi au bord de l’abandon
Si l’émoi donne le?
Une main posée sur le périnée
Pour prolonger ce vol synchronisé
?Sauvage
Le corps à l’ouvrage
Englué dans la moiteur
Le temps de reprendre des couleurs
Bleu de nuit
Bleu, bleu, bleu de nuit,
Morsure, morsure, morsure de l’ennui, de l’ennui
Sortie de la cuisse de Jupiter
Par une phalange brûlante
Ton plaisir est solitaire
Même tes pupilles s’absente not
On s’unit comme on se vautre
L’orgasme ne vient pas de l’autre
Le blues des corps empêchés
C’est l’égoïsme partagé
Mes, mes arguments, tes, tes attributs
Le vertige qui me donne la?
Suffit pas juste de bander
Bleu de nuit
Bleu, bleu, bleu de nuit,
Morsure, morsure, morsure de l’ennui, de l’ennui
L’amour est un lieu avant d’être un lien
Un endroit plus ou moins lointain
Il n’y a que les souvenirs qui sont fidèles à la mémoire
C’est pourquoi on se partage ce territoire
Toi, moi, eux,
Et chaque fois que tu reviens sur les lieux
Tu me vois comme tu voudrais, mais pas comme je suis
Celui des souvenirs, celui des premières nuits
Bleu de nuit
Chez les Hommes ont dit que le corps se recroqueville
Redevient carcasse, revient coquille
Quand les épaules sont des forteresses
Mon corps entier n’est plus qu’un aveux de faiblesse
Attraction, repulsion, le corps est démunis
Après l’extenuation, la mécanique nous trahit
Réduit à sa plus simple expression
Quand le tatami n’est plus qu’un lit
Pour grands brûlés affectifs
Cachés derrières des draps et des poncifs
Forcément ébranlés, forcément vulnérables
Petite mort inconsolable
Pourquoi tu te laisse pas aimer?
Pourquoi tu reprend ce qu’on te donne?
A música termina.
Suellen senta.
:: Mais um pouco de água
A luz ilumina todo o espaço cênico novamente.
Ela alcança a garrafa e bebe água.
Respira, enxuga o suor.
Olha as pessoas presentes.
Respira.
Guarda a garrafa.
:: Movimento 3
O som ressurge.
A luz se concentra no cenário criado com o capacho e com os tijolos.
Suellen se levanta e dança as palavras. Mesmas regras.
O som se transforma em um áudio de recado enviado por telefone:
Ei menina, boa noite!
É…eu tô aqui no espanca, né!
Ensaiando aquela performance que eu te falei, que ela fala sobre amor.
E eu parei… aqui, pra poder pensar sobre, como falar, e sei lá eu acho que, não sei falar de amor, sabe?
E é foda! porque eu num, não tô conseguindo construir.
Algo no meu corpo, que seja, que não doa, sabe?
Acho que…minhas experiências de amor, dói.
Acho que, falar de amor é mais fácil falar para o outro, que pra mim mesma.
É mais fácil ouvir o outro que a mim mesma, mas ao mesmo tempo eu acho que, criar essa performance falando dessa relação amorosa com outra pessoa, talvez seja libertador pra mim, sabe?
Para mim, perceber coisas, sentimentos, resquícios de relações passadas, sabe?
E aí eu percebi, que depois que a gente se relacionou, eu consigo ver amor de outra forma, sabe?
Percebi que consigo ver outras possibilidades de amor.
Percebi que, é estar junto, mas é estar junto com esse amor sendo leve, esse amor sendo tranquilo, sabe?
Onde eu não me anule, por causa do outro, onde eu não me negligencie, esqueci a palavra, e enfim, vou tentar falar, mas eu acho que você sabe que palavra é essa, porque eu aprendi ela com você, mas enfim, por causa de amor, sabe?
E eu tenho colocado pra mim que é um absurdo, chorar por querer que alguém me ame, sabe?
Tenho percebido que é um absurdo, tipo, eu querer alguém do meu lado, eu forçar alguém do meu lado, sendo que, a pessoa não queira, sabe, num quer!
E eu percebo que eu me conheço mais, entendo os meus limites, entendo o que eu gosto, sei algumas coisas que eu permito, sei das coisas que eu não permito, mas ao mesmo tempo, no meio do caminho desse processo inteiro quando aparece pessoas, eu fico ainda me diminuindo, saca?
Me perguntando por que, que fulano de tal quer ficar comigo, sabe?
Mas tipo, eu não sou nada, não tenho nada, nem sou tão bonita assim.
Fulano de tal é tão lindo ou é tão bonito, por que, que quer ficar comigo, sabe?
É, dói, sabe?
E aí, eu vejo que é um encontro comigo mesma, assim.
Me perdoar também, sabe?
Pelas vezes que me permitir estar em situações que não me faziam bem.
Pelas vezes que eu não soube me ouvir.
e perceber que eu estava me machucando dentro de uma relação, mas que ao mesmo tempo pelo social, ao mesmo tempo pela aparência, ao mesmo tempo pela minha solidão, eu queria, tipo, estar com alguém.
E com isso eu me permitia, sentir coisas, fazer coisas que, sei lá, que hoje eu vejo, o quanto que não foi bom e que hoje eu vejo que, o quanto que reflete em mim, sabe?
Nessa questão de ter medo de gostar de alguém, nessa coisa de, não sei, eu acho que esse amor preto dói, dói pra caralho, mano!
Porque quando você não está sendo hipersexualizada, você está sendo amante, você está sendo escondida ou você está sendo intensa demais, ou você está sendo a louca, sabe?
E, sei lá, eu não sei, é como tava te falando eu, queria, sentir meu coração, desesperar de novo, sabe?
Doer, e… com saudade de alguém, com uma vontade de…um amor assim, sabe?
Mas eu vejo que tem algo em mim, que ainda não consigo, consigo não.
E real, nem sei porque estou te mandando esse áudio, também, talvez, pelo ensaio aqui, a construção de tudo, vai ser bom pra mim, pra me ouvir depois e, poder dançar minhas falas, né?
Porque também é isso, né?
Não queria falar sobre o amor que, que dói.
Mas ao mesmo tempo não tem como, falar de amor sem doer.
Sendo que as minhas relações me trouxe isso, sabe?
E, é isso, assim…ficou grandinho, né?
Se você não tiver paciência de ouvir, não tem problema!
Acho que eu gravei pra você, muito mais no intuito de eu me ouvir, sabe?
Ai mano… é tanto nó, sabe?
É tanta coisa que, sei lá.
A música termina.
Suellen senta.
A luz não se modifica.
:: Ela, Água
Suellen sentada alcança a garrafa.
Bebe água.
Enxuga o suor.
Olha para o público dividindo aquelas palavras, anteriormente ditas, com o olhar.
Começa um assobio em off.
É a introdução de uma música.
:: Saiba
Depois da introdução a música é identificada.
“Eu apenas queria que você soubesse”, de Gonzaguinha.
Na primeira parte da música, Suellen alcança a sacola e retira algo protegido por plástico bolha.
Eu apenas queria que você soubesse
Que aquela alegria ainda está comigo
E que a minha ternura não ficou na estrada
Não ficou no tempo, presa na poeira
Eu apenas queria que você soubesse
Que esta menina hoje é uma mulher
E que esta mulher é uma menina
Que colheu seu fruto, flor do seu carinho
Eu apenas queria dizer a todo mundo que me gosta
Que hoje eu me gosto muito mais
Porque me entendo muito mais também
O objeto já está desembrulhado. É um tablet.
Suellen levanta.
Busca um aplicativo e o abre.
São fogos de artifício.
Apresenta ao público.
E que a atitude de recomeçar é todo dia, toda hora
É se respeitar na sua força e fé
Se olhar bem fundo até o dedão do pé
Eu apenas queria que você soubesse
Que essa criança brinca nessa roda
E não tendo o corte das novas feridas
Pois tem a saúde que aprendeu com a vida
Ah, ah, ah, ah, ah
A iluminação da ilha se esvai.
Permanece um contra-luz.
Eu apenas queria que você soubesse
Que aquela alegria ainda está comigo
E que a minha ternura não ficou na estrada
Não ficou no tempo, presa na poeira.
Ela permanece de pé,
Mostrando os fogos de artifício.
A música acaba, a luz cai.
O som e a imagem dos fogos são as únicas presenças sentidas.
Os fogos inauguram os próximos passos da vida.
Blackout.
Fim.